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Cinema Marginal

Lygia Pape

Ser marginal, estar à margem de uma sociedade, ainda permanece como um conceito burguês. Não foi esse cinema marginal de que participei ou participo. Marginal era o ato revolucionário da invenção, uma nova realidade, o mundo como mudança, o erro como aventura e descoberta da liberdade: filmes de 10 segundos, 20 segundos... o anti-filme.

Eu vinha de grupos radicais, como o Neoconcreto, propondo uma linguagem despojada, não discursiva _ "o menos é o mais". Puro minimalismo. Essa postura estética tão clara determinava uma posição o mais longe possível dos filmes com roteiros pré-determinados, apoiados quase sempre em historinhas com princípio, meio e fim, um conceito aristotélico. Interpretar um roteiro era tudo o que eu não queria. Nada de novo, nenhum risco, somente o previsível, o chamado cinemão que alimentava festivais, exibidores e as pessoas distraídas.

Pessoalmente, escolhi o território do curta-metragem por estar livre das grandes produções, dos problemas burocráticos e principalmente financeiros. Pura alegria e prazer da criação. Tudo correndo na intimidade do diretor/editor, um fotógrafo simpático e um eletricista: estava pronta a equipe. Sempre trabalhei em 35 mm.

Continuo achando o diretor realmente soberano. Não há nada a fazer sem ele, pois o fotógrafo é de livre escolha e não há a possibilidade de o roteirista ser imprescindível ao filme. Haja visto Glauber Rocha, meu querido amigo , que teve a audácia de fazer filmes com roteiros elaborados ao calor da filmagem em longa-metragem.

Entre os anos 1960 e 1970, assisti a todos os copiões dos filmes do Cinema Novo, na velha Líder. Era pura visualidade _ imagens soltas, brilhantes _ e com a imaginação eu construía estruturas de claro e escuro, como pinturas. Poucas vezes me interessei em ver os filmes prontos.

O primeiro filme de Glauber Rocha mostrado no Rio de Janeiro foi visto por Mario Pedrosa, Lygia Clark, Hélio Oiticica e outros, na minha casa. Era o Pátio. Glauber era colaborador do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, que era o jornal do grupo Neoconcreto. Nada mais natural que o víssemos em primeiro lugar. Também Paulo Cesar Sarraceni mostrou a primeira versão do Arraial do Cabo no mesmo lugar. Os dois eram interessados também em artes plásticas, daí o diálogo intenso.

Tive uma sociedade com Gilberto Macedo e Luis Carlos Soares, um pequeno cine clube. Víamos todos os filmes possíveis. Os festivais foram outra fonte de informações _ José Sanz e o cinema inglês, francês, japonês, espanhol e principalmente russo. Melliès sempre teve mais importância do que os irmãos Lumière. Enquanto os dois alimentaram, e alimentam até hoje, o cinema, um cinema literário, narrativo, Melliès era a própria força, a imagem pura como expressão. É um cinema sedutor, mas mais afastado do sucesso de bilheteria, pois o público está viciado no fácil, no lugar-comum, o que subjuga todos os cineastas.

Dali com Buñuel, Carl Dreyer e seu vampiro misterioso e sem efeitos especiais, o construtivo Ozu, que teimam em chamar sociológico e principalmente Entr'Act, de Jean Renoir, são herdeiros de Melliès, meu ídolo.

Trabalhei ainda com o Cinema Novo, mas profissionalmente como designer. Créditos, cartazes, displays para Mandacaru vermelho (o mais trabalhoso): gravei alfabetos em madeira e imprimi todos os letreiros, letra por letra, em precioso papel japonês para deixar aflorar a textura da madeira, como um cordel nordestino. Depois vieram Vidas secas, Ganga Zumba, Deus e o diabo na terra do sol, O padre e a moça, A falecida, O desafio e outros, e mais alguns curtas.

Paralelamente, cuidava de minha produção pessoal: realizei muitos "poemas visuais" com as imagens em movimento, uma sinopse interessantíssima, as imagens se construindo como a construção de Brasília. Tenho o filme em anotações tipo storyboard _ ainda vou fazê-lo. Agora, como a desconstrução da cidade.

Em 1963, Cosme Alves Netto encomendou-me uma vinheta para todos os filmes da Cinemateca do MAM/Rio, a serem mostrados no cinema Paissandu. Como todas as pessoas diziam sempre "...vou a mam, mom, mooooom", usei o mugido de uma vaca de Vidas secas sobre a imagem da logomarca MAM, que surgia em fade in/fade out várias vezes. Depois, entravam as sílabas da palavra ci-ne-ma-te-ca escondidas sob/sobre fotos de filmes antigos, que tinham referência sonoro/visual com a palavra. O filmezinho transformou-se no maior sucesso do Paissandu. Fui censurada por Cosme Alves Netto a mando de Niomar Muniz Sodré, que não entendeu o humor do filme.

Em 1967, participei de um concurso internacional em Montreal, com o tema A terra dos homens, de Saint Exupéry. O filme deveria ter 50 segundos em uma linguagem universal. Imaginei o homem não só sobre a terra, mas no espaço, pois começavam as grandes viagens interplanetárias. Consegui imagens da Nasa sobre o primeiro vôo de um cosmonauta: ele surge (em branco e preto) na tela, evoluindo no espaço como um feto ligado à nave/útero por um cordão umbilical. Ele faz algumas evoluções e de repente a tela fica toda vermelha (em uma viragem) e ouve-se o choro de um bebê _ nascia o novo homem: La nouvelle creation.

Iniciei logo a seguir um filme sobre os beijos no cinema. Ficou inconcluso.Realizei três longas em Super 8, todos em 1974, com 40 minutos de duração cada. Em Wampirou (o vampiro que pirou), além dos "atores" trabalharam como extras artistas plásticos como Lygia Clark e poetas como Waly Salomão. Carnival in Rio é sobre o carnaval individual do "eu" sozinho, filmado entre a praça Mauá e o Obelisco, no Rio de Janeiro. Arenas calientes era o mais interessante, pois meus personagens tinhasm aventuras no deserto com dunas imensas, onde hoje é o Condomínio Nova Ipanema, no Rio de Janeiro. A dificuldade em encontrar água no deserto saciava-se com gasolina nos postos Esso da região. E etc. Fiz um filme sobre Oswaldo Goeldi (1971, 35 mm) que dividi em quatro partes. A voz de Hélio Oiticica permeia as partes.

Realizei Eat me em 1975 e é um filme em que crio um clima erótico somente com o close de uma boca que pode ser vista como um olho, uma vagina, ou uma boca mesmo. Vozes em várias línguas marcam o ritmo: "a gula ou a luxúria". A edição do filme é feita matematicamente, isto é, as partes do filme são cortadas na medida métrica a partir de um princípio: dividi o filme em duas partes, depois dividi a metade em outras duas e assim sucessivamente até o final, conseguindo uma pulsação que vai em um crescendo até o fim. Corta-se a imagem sem a preocupação de uma descrição do momento _ somente um número determina o corte. Quem grita/canta é Yoko Ono, em certo momento.

Depois, em 1978, surgiu Catiti Catiti (lua nova, ó lua nova), filme em preto e branco, em 16 mm (o único), onde o sentido de desconstrução é bem explícito. Fala da antropofagia e suas devorações espirituais ou não.

Tenho alguns vídeos novos: Sedução 111'' (2000) é uma imagem de grupos de pessoas que se repete infinitamente em movimentos de vai-e-vem, como uma onda. Sua edição também obedece a um ritmo apoiado em relações matemáticas.

Maiakóvski, a viagem é um vídeo de 2000, feito para ser mostrado nas ruas das cidades. Usei uma imagem da cabeça de Maiakóvski feita pelo pintor russo Rodchenko, e da boca do personagem saem duas frases que são títulos de poemas do próprio Maiakóvski, De rua em rua e No automóvel, enquanto carrinhos verdes rodam em várias direções pela tela.

No momento estou trabalhando em um vídeo sobre sombras. Veremos.

Alguns cineastas que me impressionaram: Glauber Rocha em Deus e o diabo na terra do sol; Júlio Bressane em São Jerônimo; Rogério Sganzerla em Mulher de todos; André Klotzel em Marvada carne; Mário Peixoto em Limite; Humberto Mauro em A velha a fiar e Ganga bruta; Nelson Pereira dos Santos em Vidas secas, que poderia ser perfeito não fosse o roteiro linear que lhe tira toda a totalidade. No livro, pode-se abrir em qualquer capítulo e a história está inteira. No filme é uma concessão. Poderia dizer que teria se tornado um filme Neoconcreto, se isso significa um elogio.